Sankisan Maru
Truk Lagoon: Um Notável Museu Submerso
Mergulho no Sankisan Maru


Por: Nestor Antunes de Magalhães

 

 
Nosso dia sempre começava com o briefing do Capitão Lance Higgs, utilizando como apoio um telão instalado na sala dos mergulhadores, à popa do SS Thorfinn. Estávamos a bordo deste antigo baleeiro de 1.100 ton de deslocamento, agora transformado em navio-base para mergulhadores e fundeado bem no centro de Truk Lagoon. Esta antiga base japonesa, havia sido bombardeada à extinção por aeronaves embarcadas em porta-aviões da Marinha americana em 17 Fev 44, a Operação Hailstone.
Foi um ataque surpreendente e devastador que mandou para o fundo da laguna mais de 60 navios japoneses, a grande maioria transportes e destruiu no solo e no ar, 270 aviões.
O custo para a US Navy foi pequeno: somente 25 aviões abatidos.
Agora, 68 anos depois deste dia memorável para a Guerra do Pacífico, estamos aqui cercados por todos os lados pela História, principalmente abaixo da superfície do mar, nas profundezas de Truk.
O Capitão Higgs diz que hoje o nosso mergulho será no Sankisan Maru, um grande cargueiro com 4.776 ton de deslocamento e 112 m de comprimento.
Quando do ataque americano, esta embarcação estava fundeada a oeste da Ilha Uman e foi alcançada por algumas bombas lançadas por aviões do Bunker Hill. Ao que parece, uma bomba de 500 kg atingiu a proa e um torpedo destruiu boa parte do casco, ante-a-vante da popa e que agora está separada do resto dos destroços pela catastrófica explosão.
O capitão nos passa mais detalhes: o naufrágio se encontra em posição de navegação, o mastro principal quase tangencia a superfície e tocaremos o convés a cerca de 20 m. Atento, anoto tudo que é possível nas costas das mãos.
Embarcamos na lancha que sempre permanece atracada a bombordo do Thorfinn. Somos somente três mergulhadores, o Luís Mota, o Patrick McGrath e eu. Nosso guia é o trukês Erick e a bordo segue mais o piloto. Logo já estamos manobrando sobre o Sankisan e, como sempre, o guia descobre a posição exata do naufrágio para lançar o ferro. Como é possível tamanha exatidão? Procuro por alguma sombra do mastro pois sei que ele está só a 12 pés das ondas. Poderia ser uma referência. Nada!
 

Nossa lancha sempre a bombordo do SS Thorfinn

O mastro principal
 
Logo o cabo tenciona, indicando que o gancho na sua extremidade, unhou os destroços.
O mar é de um azul intenso como tinta e as ondas são relativamente pequenas. Com um acrobático rolamento de costas pela borda da lancha e um grito de guerra, bato na água em um estouro de espuma branca. Fecho os olhos. Reabro submerso. Uma fantástica visão azulada, transparente e cheia de luz! Não há corrente, a temperatura da água é 29 °C e estou respirando Nitrox 32, uma mistura gasosa com maior percentagem de oxigênio que permite ao mergulhador um tempo de fundo mais dilatado sem parada descompressiva. Logo enxergo o mastro do Sankisan e a sombra bem definida do seu casco. O guia segue à frente, Luís e Patrick um pouco atrás e eu sou o último. Passamos junto ao enorme mastro completamente mascarado por corais vermelhos, esponjas, conchas e escamas de ferrugem. A luz natural ainda penetra intensa por aqui e o coral nos encanta: são colônias brancas, rosadas, pretas e vermelhas. Peixes coloridos por todos os lados. Alguns, curiosos, chegam bem perto quase permitindo que sejam tocados com a mão, a semelhança de um animal de estimação. Que coisa!
 

Os pneus ainda resistem 68 anos depois
Desço direto para a proa. Não há nenhum canhão por ali, mas, de soslaio, consigo identificar mais adiante os restos de dois caminhões no convés. Permanecem a bombordo, entre a murada e a boca escura do Porão Um. Estão desmanteladas pela força da explosão e incêndio, provável conseqüência do impacto de uma bomba. São objetos fantasmagóricos, absolutamente deslocados do seu ambiente e nos destroços da cabine do mais próximo, mora uma rechonchuda moréia esverdeada. Abre e fecha uma ameaçadora bocarra, guarnecida por muitos dentes pontiagudos, numa aparência feroz. Não perturbo o animal, sei que se não for incomodado, é inofensivo. Deixamo-la na sua casa. Uma última olhadela no caminhão. Interessante como a borracha resiste ao tempo e ao ambiente marinho hostil. Os pneus ainda permanecem relativamente bem conservados, engastados nos seus aros enferrujados.
Estou sozinho. Meus companheiros foram para dentro do Porão Um. Confirmo isso pelos penachos de bolhas que sobem lá do escuro compartimento.
A visibilidade é excelente, talvez uns 30 m e aproveito para nadar em direção a popa, sempre paralelo ao convés. Planejei o meu mergulho, sempre faço isto. Mergulhar mais fundo aumenta o consumo de ar e como sou um notório "papa ar", economizo, deixando o porão para o final. Pelo convés vou encontrando garrafas e louças. Também aparece um grande garrafão e uma lindíssima lanterna de latão. Parece estar com o vidro. Hummmm, e se eu achasse uma Katana, ainda na sua bainha? Melhor: que tal uma pistola Nambu no seu coldre? Puxa, isto só acontece em filmes.

 
Depois é um tonel em pé, com uma metralhadora colocada em cima. Algum mergulhador botou a arma ali. Não é possível identificar a metralhadora pois o engenho está completamente tomado pela concreção marinha. Parece ser uma 7,7 mm de um caça Zero.
Nado mais alguns metros e surge agora a coberta, destroçada por uma medonha explosão. O navio foi cortado logo após o Porão Três e lá de cima avisto o fundo de areia branca coberto de destroços. Minha nossa!
Mais alguns metros e surge a sombra da popa, separada do casco desmantelado. Consigo distinguir o enorme hélice de quatro pás ainda preso a seu eixo. Não ouso descer até lá pois está bem mais fundo.
Foi um longo passeio solitário, sempre nadando em profundidade logo acima da coberta. Confiro os instrumentos: meu consumo de ar está conforme o planejado e a palheta de memória do meu profundímetro, permanece cravada nos 20 m. Isto significa que, até agora, não fui além desta marca e isto me permitiu ir até a popa com um consumo aceitável. Retorno à proa cruzando a grande abertura sem tampa do Porão Três. Uma olhadela para baixo e vejo algumas sombras que parecem ser mais um caminhão e alguns motores radiais de avião. Logo estou na borda do Porão Um. Desço em um suave espiral desfrutando de uma sensação deliciosa de ausência de gravidade, "planando" até o fundo do porão onde estão meus parceiros. O Luís dá aquela bronca pois levantei alguma suspensão e estou estragando as suas fotos.
 

Flutuabilidade neutra no porão
 

Lanterna de bronze no convés

Nosso guia e um motor de avião

Motor radial de avião

A vida é abundante no naufrágio
 
 
Injetando e drenando um pouco de ar no colete equilibrador, consigo resgatar a minha flutuabilidade neutra. A profundidade é 25 m e a temperatura continua nos deliciosos 29 °C. Isto permite que o nosso guia mergulhe somente de bermuda, sem utilizar roupa de neoprene.
Impressionante! No porão jazem milhares de cartuchos 7,7 mm para fuzis e metralhadoras! Cunhetes de madeira apodreceram e a munição escorre e se espalha na areia que recobre o piso do porão. Também por ali estão milhares de carregadores tipo lâmina, modelo Puteaux, para metralhadoras Nambu Tipo 92, todos ainda alimentados com 30 cartuchos. Interessante a semelhança destes carregadores com os utilizados pela metralhadora Hotchkiss, arma que esteve em serviço no Exército brasileiro por muitos anos.
Em um canto, algumas granadas de mão e cartuchos de canhão 20 mm. Nosso guia fuça nas granadas. São iguais àquelas que aparecem no filme "Cartas de Iwo Jima". Lembra daquela cena de suicídio dos soldados japoneses entocados nas cavernas do Suribachi? O engenho deve ter sua espoleta batida em uma superfície dura para depois lançá-lo. Olho as granadas e me lembro do filme. Minha nossa, é muita História!
 

O autor no porão número Um


Ficou só a forma do cunhete

Carregadores tipo Puteaux para 30 cartuchos

Carregador com 30 cartuchos 7,7 mm

Mais ao lado, jaz um enorme estojo de artilharia, talvez de um calibre perto dos 280 mm. Tento erguê-lo do fundo, mas não consigo, é muito pesado. Só faço é subir uma nuvem de silte marinho. Ao lado está uma máscara contra gases, com o facial, traquéia e tambor filtrante, em surpreendente estado de conservação. Mais ao fundo do compartimento surge outro caminhão e não longe dali, um motor radial de avião. Mais para a sombra aparece um objeto cilíndrico que, pela forma e dimensão, indica ser uma carga de profundidade. Será possível?
Lembro que o capitão comentou no briefing que em 1974 foram removidas dos porões do Sankisan Maru, 284 cargas de profundidade e muitas granadas de 4,7 pol. Este resgate foi feito por que esta munição, 30 anos depois, ainda apresentava risco de uma explosão acidental. E não só por isso. Parece que estas cargas de profundidade estavam deixando vazar ácido picrico, componente químico do explosivo e que estava envenenando a vida marinha junto ao naufrágio.

 

 

 

O mastro quase alcança a superfície
 

Não encontrei uma pistola Nambu,
mas uma máscara contra gases

 
Bem, é hora de subir e como de costume, sou o primeiro. Tempo de fundo 30 minutos, que pena, passou tão rápido. Sinalizo "subir" ao guia. Ele confirma com outro "subir". Polegar para cima. Inicio então o caminho à superfície nadando ao redor do mastro principal. O momento é de calma e relaxamento. Vou contemplando a vida marinha presa no mastro, abundante e colorida. Não há corrente, portando pode-se emergir sem o auxílio da amarra da âncora e logo estou a bordo da nossa lancha.
O Sankisan Maru é um dos mais interessantes e visitados naufrágio das profundezas de Truk Lagoon, um verdadeiro museu submerso, repleto de encantamento, História e disponível para mergulhadores de todos os níveis.
 

 


Carregadores da metralhadora Nambu

 

Nestor Antunes de Magalhães é membro do Grupo BdU - Brazilians discovering Unterseeboote, um grupo especializado no estudo histórico da atuação dos submarinos alemães na costa brasileira durante a Segunda Guerra, colaborando com informações para as expedições de mergulho nos U-Boats naufragados.
Maiores informações: http://u-boats.sites.uol.com.br