Mergulhando nos segredos
do Buraco do Inferno

Revista Geográfica Universal, junho de 1991
Texto: Mauricio Carvalho
Fotos: Marcus Werneck e Maurício carvalho
 
O mergulhador especializado em espeleo-sub -- explorações subaquáticas em cavernas -- Maurício Carvalho e o fotógrafo Marcus Werneck tentam descobrir aos poucos os segredos do buraco do Inferno, uma dolina situada em uma propriedade particular no município de Padre Bernardo, em Goiás. Trata-se de uma depressão de cem metros de diâmetro por 42 de profundidade, que termina em um lago de águas incrivelmente azuis, ponto de partida para um desconhecido mundo submerso repleto de túneis galerias labirínticas e salões sifonados habitados por peixes algas e tartarugas. A espeleo-sub é uma técnica muito arriscada, que exige um treinamento rigoroso - além de grande dose de sangue-frio e já levou a vida de muitos aventureiros, inclusive no Brasil. O grupo de Resgate e Exploração de Cavernas (GREC) sediado em Brasília, já atingiu, no lago, a profundidade de 65 metros e ainda espera desvendar muitos mistérios do ainda desconhecido Buraco do Inferno que a natureza plantou no cerrado goiano.
Quando, no início daquela manhã de 1987, cheguei ao fundo daquela íngreme formação rochosa que leva o su-gestivo nome de Buraco do Inferno, não consegui segurar minha emoção. Era tremenda a minha excitação para mer-gulhar naquele lago, que de tão azul ofuscava meus olhos. A surpresa era ainda maior porque as informações que nos levaram até lá não eram muito confiáveis. Afinal, quem iria acreditar que em pleno cerrado goiano existe uma gruta cercada de mata, com um incrível lago onde nadam peixes e tartarugas e que, além de tudo, possui transparência e profundidade inimagináveis?
Desde 1984, eu e um grupo de amigos espeleólogos --fundadores do Grupo de Res-gate e Exploração de Caver-nas, sediado em Brasília --passamos a checar todas as informações que nos pudessem levar à descoberta de uma nova gruta. Assim, embora cépticos devido ao grande número de saídas infrutíferas, resolvemos averiguar o tal lago no Buraco do Inferno.
Ao chegarmos ao alto de um platô cortado por uma depressão de mais de cem metros de diâmetro, coberta por uma densa mata -- num significativo contraste com a escassa ar-borização do cerrado brasilei-ro --, sentimos que estávamos diante de um novo desa-fio. A princípio, o Buraco do Inferno seria mais uma das dezenas de dolinas que exis-tem no Brasil -- formações surgidas com o desabamento do teto de uma Caverna e que, de tão profundas, podem atin-gir o nível do lençol subterrâneo. Neste caso, devido à dis-ponibilidade de água, forma-se ao redor uma mata-galeria.

Dolina do Buraco do Inferno
No caso específico daquela dolina, a mata é tão densa que deixa vislumbrar apenas uma pequena parte da cavidade. Em uma das vertentes, uma parede rochosa despenca verticalmente até encontrar o lago. Acima dela, bandos de jandaias voavam e seus gritos ecoando no fundo do abismo produziam um barulho ensurdecedor. Nosso guia --- que já conhecia o local -- indicou o ponto de descida: 42 metros na vertical até o lago. Prepara-mos a descida com corda e, em alguns minutos, já estávamos passando por entre as árvores e alcançando o fundo pedregoso. Nem as abundantes urtigas seriam empecilho para se atingir aquele lago de azul quase irreal. Na superfície, uma vasta cobertura de algas deixando entrever, de ponto em ponto, cardumes de peixes. Subitamente, duas tartarugas cruzavam a nossa frente, nadando sem pressa até desaparecerem na massa algal. Era impossível esperar mais para o nosso batismo naquela aventura. Rapidamente preparamos o equipamento e entramos na água.
0 fundo começava plano e raso, tornando-se subitamente íngreme. Após alguns metros de natação, só existia debaixo de nós uma profunda tonalidade azul. Como a água era incrivelmente clara, isso só poderia significar que o fundo estava muito longe de ser alcançado pela luz. Atingimos os 30 metros planejados. As lanternas já iluminavam por completo o nosso caminho, embora ainda fosse possível visualizar nosso amigo Alessandro nadando na superfície. A exploração preliminar estava encerrada. Para baixo, nada! Os fachos das lanternas eram envolvidos pela escuridão de muitos metros de água.

 

Foto:Marcus Werneck
 
Passado um ano de explorações, o lago do Buraco do Inferno já nos era familiar. Fomos obrigados a desenvolver técnicas cada vez mais sofisticadas para levar e trazer a carga ao fundo da dolina. Para se ter uma idéia, uma única garrafa de mergulho pesa de 15 a 20 quilos, e chegávamos a utilizar até onze delas num mesmo dia! Os mergulhos eram agradáveis e as descompressões penosas. Isso porque estávamos a uma altitude de mil metros, fator responsável pelo aumento da descompressão necessária para a eliminação do nitrogênio acumulado pelo corpo durante o mergulho. Comprovamos que a temperatura da água varia pouco ao longo do ano: 27 graus em média. O fundo, até 20 metros, é densamente coberto por algas e alguns galhos de árvores que mais parecem saídos de um filme de terror.
 

Maurício e Andréa Carvalho no
Lago do Buraco do Inferno
A partir dessa profundidade, já se está sob o teto da gruta, não havendo mais luz suficiente para a proliferação de algas. O lago possui uma série de galerias. As duas principais têm paredes negras, trinta metros de diâmetro e uma inclinação de 45º. Uma delas foi totalmente explorada e atinge cinqüenta metros de profundidade, terminando num amplo salão. Durante a exploração deste salão, o pequeno ponto luminoso da superfície parecia infinitamente distante. Lembro que me perguntei: o que estou fazendo aqui? Provavelmente estava sob os efeitos da narcose -- uma intoxicação, semelhante à embriaguez, causada pelo nitrogênio do ar comprimido respirado a grandes profundidades. Os olhos arregalados de meus companheiros pareciam perguntar a mesma coisa.
Mas o sonho de encontrar uma galeria sifonada quando o acesso é submerso -- parecia cada vez mais distante. Até que um dia chegou a grande notícia. Outros membros da equipe haviam descoberto um salão sifonado. A localização do ponto de entrada era inacreditável. Havíamos passado por ali dezenas de vezes sem nada perceber. A dezoito metros de profundidade existia uma passagem que subia lentamente em direção à superfície, onde se abria num majestoso salão. A silhueta da entrada, em contraste com o azul do lago, era um espetáculo raro. Os gritos foram inevitáveis. Dezenas de expedições e muitos mergulhos depois, o Buraco do Inferno revelava enfim os seus segredos.
O salão é amplo, uns cinqüenta metros de comprimento por dez de largura.O teto chega a atingir quinze me-tros. O ar quente e úmido, embora difícil de respirar, devia ter comunicação com o exterior através de fendas, pois, apesar da variação anual, nossos equipamentos indicavam que a superfície da água estava no mesmo nível do resto do lago. A partir e em volta deste salão existem vários túneis submersos, todos mais estreitos e labirínticos. Várias vezes, ao explorá-los, não enxergávamos nem a carretilha em nossas mãos, pois, apesar dos cuidados para não se tocar no sedimento do fundo, as bolhas agitavam as partículas nas paredes e no teto, reduzindo a visibilidade a zero. Nessa situação, o cabo-guia era o único meio de se retor-nar à superfície. Agora, já conhecemos quase toda a gruta. Para tentar chegar mais fundo -- e com mais segurança -- passamos a utilizar computadores de mergulho. No entanto, a barreira fisiológica dos 65 metros não é transponível com o equipamento que possuímos, sem uma dose de risco, para nós inaceitável. Além dos 65 metros, as luzes das lanternas continuam a não encontrar o fundo. Estaria a 80, 90 metros? Difícil dizer. A transparência? Ilimitada. Mas um dia desvendaremos todos os mistérios do Buraco do Inferno, aberto em pleno cerrado goiano.
 

Croqui: Célio Cesar
 
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