U-853
A Tragédia de Block Island
Por: Nestor Antunes de Magalhães


Pois foi no começo do verão americano de 2008 que desembarquei na cidadezinha de New London, Connecticut, um antigo porto baleeiro quase na foz do Rio Thames. Apesar de importunado com o volume e o peso de uma colossal mochila que continha todo o meu equipamento de mergulho, estava bastante feliz, pois havia conseguido mergulhar no U-85, na Carolina do Norte, não faziam mais do que quatro dias (1).
Agora seria a vez do U-853, afundado em combate algumas horas após o final da II Guerra Mundial. Meu anfitrião era o Gary Chellis, experiente mergulhador e proprietário da Atlantis Dive Charters, empresa que leva os mergulhadores aos melhores points da região. Para tal missão, possui uma confortável e bem equipada lancha com 33 pés, a Atlantis.
Gary me hospedou em um velho barco docado em outra marina também no Rio Thames. Eu dormia em um colchão sobre o assoalho da cabine, que cheirava ao mesmo tempo, mofo, maresia e óleo, embalado pelas marolas a noite toda e acordava muito cedo com os "crocs" das gaivotas. Quanto ao cheiro... ora era o cheiro dos U-Boats. Bem, pelo menos eu estava no clima. Que coisa!
Combinamos o mergulho no U-853 para três dias depois. Ele viria me apanhar por volta das 04h50min h da madrugada. Não confiando no despertador do meu relógio e preocupado em adormecer e perder a hora passei noite acordado sob uma intensa expectativa. Uma noite escura e fria, onde desfilou nos meus pensamentos a história do U-853. E que história!
 
Lancha da Atlantis Dive Charters

 

(1) O autor mergulhou no U-1277, U-Boat afundado pela própria tripulação ao largo do Porto, Portugal, em 2003. Em 2006 mergulhou no U-352, afundado em combate junto à costa da Carolina do Norte e visitou o U-505, U-Boat capturado pela US Navy e que está no Museum of Science and Industry, Chicago. Em 2007 mergulhou no U-1105, o Black Panther, submarino que se rendeu ao final da II Guerra Mundial e que foi utilizado como alvo pela US Navy no Rio Potomac, Maryland. Já em 2008 mergulhou no U-85, o primeiro U-Boat afundado em combate na costa leste americana e no U-171, afundado ao se chocar com uma mina ao largo de Lorient, França.
 
O Ataque
Início de maio de 1945. A II Guerra Mundial está terminando. No dia 4 o comandante da Marinha alemã, o Almt Karl Doenitz, ordenou que todos os U-Boats ainda em operações, emergissem, hasteassem uma bandeira negra, irradiassem a sua posição em linguagem clara e rumassem imediatamente ao porto aliado mais próximo. O U-853 era um submarino Tipo IX C/40, comissionado em 25 Abril 1943, deslocando 1.100 toneladas na superfície e 1.232 toneladas submerso. Com cerca de 76,8 metros de comprimento, armado com 6 tubos lança-torpedos e 22 torpedos empaiolados, um canhão de 105 mm (2), um canhão de 37 mm e dois canhões de 20 mm em montagem dupla, o U-853 deixou sua base em Stavanger, Noruega, em 23 Fevereiro de 1945 e chegou ao seu novo campo de caça em águas americanas na região da Nova Inglaterra, na terceira semana de Abril de 1945.
 

U-853
 (2) Neste período da Batalha do Atlântico, os U-Boats já não possuíam canhões de 88 mm ou 105 mm no deck de proa. Estas armas começaram a ser retiradas a partir de 1944 ou simplesmente não colocadas quando da entrega do navio pelo estaleiro. Contudo o armamento Anti-Aéreo foi bastante reforçado. Os tempos já eram outros.

Poucos dias depois atacou o USS Eagle 56 de 460 toneladas, um pequeno patrulha rebocador de alvos ao largo do estado do Maine. A ação do único torpedo foi devastadora, liquidando com o pequeno navio e a vida de 49 marinheiros em muito pouco tempo (3).
No dia 05 Maio de 1945, ao largo do estado de Rhode
 Island e desconhecendo a mensagem de fim da guerra,
atacou o SS Black Point. um grande cargueiro que transportava 7.500 toneladas de carvão. O navio, atingido por um torpedo acústico (4) na popa, emborcou em 15 minutos matando 12 dos seus 46 tripulantes.
Dado o alarme por um outro vapor, em pouco tempo chegaram ao local três destróieres da US Navy
(USS Amick, USS Ericsson e USS Atherton), uma fragata da US Coast Guard (USCG Moberly) e mais
tarde dois Blimps,dirigíveis de patrulha (5).
 
(3) Por um longo período a US Navy acreditou que a perda do USS Eagle 56 tinha sido por acidente, com a explosão da sua caldeira. Mesmo os sobreviventes deste pequeno patrulha veterano da I Guerra Mundial, testemunhando que haviam visto na superfície a torre de um U-Boat com uma insígnia vermelha e amarela pintada, o fato não foi confirmado na época. Só muitos anos depois a realidade foi aceita e vários sobreviventes do Eagle foram agraciados com a Purple Heart.

(4) Conhecido com T5 Zaunkönig, este torpedo seguia até o seu alvo orientado pelo ruído dos hélices ou motores deste. O U-Boat normalmente destinava este tipo de engenho aos escoltas. Uma vez lançado o torpedo, o submarino deveria mergulhar profundamente e permanecer em total silêncio para evitar ser confundido com a vítima. O Zaunkönig era chamado pelos ingleses de GNAT (German Naval Acustic Torpedo).

(5) K 16 e K 58, ambos da Lakehurst Naval Air Station, New Jersey.

 

Acuado em águas perigosamente rasas, o U-853 pousou em silêncio no fundo de areia. Começava então uma intensa busca. O caçador virava caça. O U-853 foi seguido e bombardeado com quase 200 cargas de profundidade e 264 Hedgehogs (6)- Veja as fotos abaixo -, por 26 horas.
Por volta das 06h30m. do dia 06 Mai 45, um dos Blimps lançou uma sono-bóia sobre o local onde o U-Boat sangrava óleo e ar. Pelo amplificador pode-se então ouvir, distintamente, pancadas dentro do casco e dez minutos depois um ruído longo e estridente. Havia gente viva ainda. Os dirigíveis então lançaram seis bombas-foguetes de 7,2 polegadas e os destróieres mais uma saraivada de Hedgehogs e cargas de profundidade.

 

Lançamento de cargas de profundidade
 

(6) Espécie de granada lançada em salvas de até 24 projéteis de um reparo instalado na proa do destróier, descrevendo uma trajetória alta, curva e mergulhando à frente do navio na possível posição do U-Boat detectado. A granadas se distribuíam em uma área padrão, oval ou semicircular e penetravam a água só detonando ao atingir o alvo ou o fundo do mar.

 

 
Lançador de Hedgehogs (Porco-espinho) e seu efeito na água
 
 

Na superfície apareceram novas manchas de óleo, peixes mortos, equipamentos de escape, salva-vidas, alguns destroços de madeira (o tampo da mesa de navegação) e o quepe branco do comandante, o Oberleutenant Zur See Helmut Fröemsdorf! (7). O U-Boat foi então considerado afundado no dia 06 de Maio de 1945, junto com todos os 55 homens da sua guarnição (8). Fröemsdorf tinha 23 anos.

 

Escotilha do tubo lança torpedo
 

(7) Este quepe foi integrar o acervo de um cidadão chamado Lewis Iselin, escultor famoso e colecionador. Com sua morte em Fevereiro de 1999, suas filhas, Edith Byron e Sarah Iselin, doaram o quepe para a Destroyer Scort Historical Foundation e agora pode ser visto no museu a bordo do USS Slater, irmão do Atherton e do Amick, que está docado em Albany, NY.

(8) Nem todos os tripulantes permaneceram a bordo do U-853. Alguns dias depois da sua destruição, o corpo de um marinheiro desconhecido da U-Boatwaffe foi dar em uma praia do estado de Rhode Island e foi enterrado no cemitério de Rhode Island Cemetery Annex onde está até hoje.

 

 

Mergulhando em um túmulo
 
Partimos muito cedo para o local do naufrágio do U-853. Éramos cinco mergulhadores, e logo fiquei impressionado com a sofisticação do equipamento que eles vestiam. O tempo estava bom, o mar calmo e levamos cerca de 2 horas para alcançar o local da sepultura do U-853. Notei que a ilha de Block Island estava a bombordo da nossa lancha, não muito distante. Gary havia me prevenido que a temperatura da água junto ao casco do U-Boat seria de 8ºC. Bem, sobre a minha roupa de 5 mm, vesti mais uma, curta, com a mesma espessura, capuz e luvas. Me senti o boneco da Michelin com tanta borracha. Gary me colocou lastro até nos tornozelos.
 
 
Nestor Magalhães e Cezar pouco antes do mergulho no U-Boat
 
Desci de encontro ao U-853; sabia que ia em direção a uma sepultura de guerra. Meu dupla era um cubano-americano muito amigável e bastante experiente, chamado Cezar e seguimos juntos o cabo da âncora até a proa do U-Boat. O caminho foi longo e o frio aumentava a cada metro. Um dos mergulhadores havia prendido um strobe (9) que piscava na proa. O efeito era fantasmagórico. Vi uma proa afilada, elegante mesmo coberta por sedimentos marinhos, uma forma projetada para cortar a água em grande velocidade. Observei então as quinas arredondadas do casco, lindas curvas enferrujadas, cobertas de esponjas e corais, realmente uma máquina letal, hidrodinâmica e ainda furtiva. Magnífica!
 
(9) Lâmpada pulsante que produz uma luz branca e intensa, podendo ser vista de todas as direções.
 
 Consultei meus instrumentos: puxa vida, profundidade 38 metros e a temperatura de 10ºC!
O U-853 está bem conservado apesar de tudo. Pousado normalmente em posição de navegação sobre o fundo de areia branca. Alcançamos à torre que se definia perfeitamente contra uma paisagem azul-arroxeada. A escotilha está aberta, um círculo negro perfeito. Há restos de cabos e pedaços de redes apodrecidas, bons esconderijos para peixinhos azuis e vermelhos. Sou tomado então por uma tentação irresistível de entrar dentro do U-Boat. Era como se algo me chamasse. Já havia colocado meio corpo dentro do U-853. Aos diabos com a prudência, eu estava entrando através de um portal da história. Senti a água mais gelada ainda do interior do
  submarino, arrepiante. Estava muito fácil.
Imaginei os marinheiros tentando subir por ali enquanto a água invadia o U-Boat. Uma sacudida no cilindro me trás de volta à realidade. Meu dupla, o Cezar segura o meu braçoo e na linguagem submarina diz um significativo "Não" enquanto verifica meu suprimento de ar. O ponteiro do manômetro já se aproxima da faixa vermelha; nesta profundidade o ar se esgota muito rápido.
Tenho que sair. Mas foi inesquecível aquele momento. Prosseguimos então.

São impressionantes as imagens do periscópio de ataque no meio de um cardume de peixes prateados e os dois rombos no
casco de pressão, um a frente da torre,
 
Escotilha e escada da torre
 justamente sobre a sala de rádio e o outro a boreste no casco, na sala dos motores diesels, sinais
da morte do U-Boat. Havia levado uma pequena placa de latão lastrada, com algumas palavras aos marinheiros da U-Bootwaffe, a Arma Submarina Alemã (10).
 

Consegui colocar a placa dentro do U-853 através da escotilha de carregamento dos torpedos de popa, não sem antes dar de cara com um peixe-trombeta que quase tocou minha máscara. Mais assustado do que eu, sumiu rapidamente no buraco negro da escotilha. Como é fácil para eles!
Então lembro (que hora para pensar nisto!) que aqui morreram três mergulhadores em acidentes nos últimos anos. O último foi o experiente mergulhador Stephen Hardick em 2005 (11). Que coisa!

 

Placa de homenagem aos tripulantes deixada pelo autor dentro da sala de
torpedos de popa do U-853.

(10) "Aos marinheiros da U-Boatwaffe, homens de imensa coragem e de moral elevadíssimo, integrantes de uma irmandade das profundezas, que sob as ondas lutaram até o fim e por muito pouco não mudaram o desfecho da II Guerra Mundial".

(11) Hardick tinha 60 anos e era um dos mergulhadores mais experientes da região da Nova Inglaterra. Estava realizando uma filmagem no naufrágio do U-853 quando algo de errado aconteceu. Subiu a superfície desacordado, falecendo alguns minutos depois apesar da assistência dos colegas mergulhadores.

 
Bem, é hora de subir pois ainda teremos uma parada descompressiva pelo caminho (12). Estávamos na popa e este U-Boat era do tipo IX, bastante longo, e o retorno à superfície deveria ser pelo cabo que prendia a proa do U-853 a proa da Atlantis, não adianta, é a regra. O meu dupla me acompanha até a base do canhão AAe 37 mm e sinaliza para que eu prossiga sozinho até o cabo. É um momento de certa tensão, pois é necessário localizar o tal cabo, a visibilidade está em 8 metros e agora estou só. Tenho que nadar sobre o deck do U-Boat confiando unicamente na memória, pois não consigo enxergar além dos 8 metros. Que importância ser plastimodelista, sei exatamente como é o casco de um U-Boat, pois vejo diariamente os meus modelos lá em casa. Formas familiares que me facilitam em muito o caminho de volta. Com alívio consigo ver a luz do strobe piscando, bem a tempo, pois o ponteiro do manômetro já entrou na faixa vermelha. Mão no cabo e início a subida até a cota da parada descompressiva a seis metros. Olhando para baixo vou vendo o U-853 desaparecer no azul-profundo. E ele já estava ali antes de eu nascer (13).
Realizamos dois mergulhos no U-853, ambos inesquecíveis.
 
(12) Profundidade e período de tempo que um mergulhador deve permanecer ao voltar das profundezas, permitindo que o Nitrogênio existente no seu corpo baixe a índices seguros. Estes dados são fornecidos ao mergulhador por uma tabela e ou por um computador que é levado preso ao pulso.

(13) Sempre houve algum mistério envolvendo o naufrágio do U-853. Muitos boatos afirmavam existir a bordo uma verdadeira fortuna em pedras preciosas e dinheiro vivo. Também havia a história de um carregamento de mercúrio em containeres de aço inox. O U-Boat teve a sua localização confirmada oficialmente em 1953 quando mergulhadores do destróier Samuel B. Roberts (DD 823) chegaram até ele. Nenhuma fortuna foi encontrada até agora. A partir dos anos 60, o local vêm sendo visitado por mergulhadores esportivos assiduamente, havendo inclusive a retirada de ossos humanos de dentro do casco.

 

Visitando o USS Nautilus

Aproveitei o tempo de folga para conhecer a cidade de New London, o Fort Trumbull, uma fortificação da União durante a Guerra Civil, para lavar com água doce, secar e organizar o meu material de mergulho e, principalmente, visitar o Submarine Force Library & Museum, na cidade vizinha de Groton. Pois é, ali neste museu está o USS Nautilus, o primeiro submarino nuclear da história que no final dos anos cinqüenta, atingiu o Pólo Norte submerso, uma façanha extraordinária para a época (14). Claro que fiz um tour a bordo do Nautilus; se entra pela proa e se vai até a sala de controle. Espaços bem maiores do que os que observei nos U-Boats.
 

Ainda neste belo museu, vi um dos submarinos de bolso japonês do ataque a Pearl Harbor. Me pareceu muito fino e longo e ainda um dos famosos Maiali, submarino anão italiano. Fantástico!

  
 
Submarinos de bolso japonês
 
Maiali - Submarino anão italiano


 

(14) Outra atração deste museu é um imenso modelo de um submarino da classe Gato que fica preso por cabos ao teto de uma grande sala. Todos os seus compartimentos são vazados e o visitante pode observar assim o seu interior percorrendo um mezanino na mesma altura.

 

Gary Chellis da Atlantis Dive Charters
e Nestor Magalhães
antes do
mergulho no U-853

 

“... colocar a mão em um deles é tocar em um pedaço de história. Ver-se frente a frente a um instrumento de morte, a uma arma que teve a singular capacidade de causar danos que ultrapassam meros resultados na ação em si. É o pavor que acontece quando o inimigo passa a temer aquele engenho capaz de lhe atingir a qualquer momento e sem poder ser visto. Restos de uma avançada tecnologia, operada por homens constituídos de imensa coragem e de moral elevadíssimo, integrantes de uma irmandade das profundezas. Ajoelhar-se na areia branca do fundo do mar, escutando somente a nossa respiração, em silencioso respeito e observar aquele elegante casco, mesmo desmantelado por uma morte violenta é ser tomado por grande emoção. E eu senti isto.”

“The U-Boat peril is the only thing that really frightens me”
From the diaries of Sir Winston Churchill


 


Nestor Antunes de Magalhães é membro do Grupo BdU - Brazilians discovering Unterseeboote, um grupo especializado no estudo histórico da atuação dos submarinos alemães na costa brasileira durante a Segunda Guerra, colaborando com informações para as expedições de mergulho nos U-Boats naufragados. Maiores informações: http://u-boats.sites.uol.com.br

 

FONTES DE PESQUISA
La Batalla Del Atlántico

 
Outras Matérias de Nestor Magalhães
U-352 Uma História de Ferro e Sangue

U-85 - A Batalha de Oregon Inlet