Destino: naufrágio

Abate de um INOCENTE


Revista Mergulho, Ano XIII - Nº 153 - Abril/2009
Texto e fotos Maurício Carvalho
 

A tragédia do Itapagé, vítima da Segunda guerra Mundial - um herói sob o mar alagoano

 

Muitos brasileiros são ligados as incríveis histórias das batalhas da Segunda Guerra Mundial, que com tanto heroísmo e sangue são retratadas pelo cinema americano. Infelizmente, poucos conhecem a face de horror que atingiu a costa de nosso país durante o conflito e que ceifou tantas vidas de heróicos brasileiros.
O naufrágio do Itapagé é uma dessas testemunhas.
Em 1926, o industrial Henrique Lage, dono da Companhia Nacional de Navegação Costeira encomendou ao estaleiro francês Chantiers de L'Atlantic um vapor de 4.965 toneladas brutas, batizado como Itapagé. Era um dos famosos Itas, que marcaram a navegação de cabotagem na primeira metade do século 20.
Com certeza, ele desconhecia que esse navio entraria para a história do país como uma das vítimas de um regime tirânico e covarde.

 

A GUERRA CHEGOU
A Segunda Guerra começou a marcar com sangue nosso litoral em 1941, quando os Ingleses provocam o afundamento, ao largo do Rio de Janeiro, do vapor alemão Wakama.
No final deste mesmo ano, o poderoso comandante da marinha alemã, o almirante Doenitz, decide por em execução a campanha, Paukenschlag, utilizando os U-Boats para bloquear as linhas de suprimento ao longo da costa americana.
Em janeiro de 42, como resultado da reunião dos países das Américas no Rio de Janeiro, o governo brasileiro decide cortar relações diplomáticas e comerciais com as nações do eixo (Alemanha, Itália e Japão). As consequências viriam rápidas; até julho de 1942, 12 mercantes brasileiros foram afundados nas costas americanas: Arabutan, Buarque e Olinda no Cabo Hatteras (E.U.A.); Cayru, ao largo

 
de Nova York; Alegrete, Barbacena, Cabedello, Gonçalves Dias, Parnahyba, Piave e Tamandaré em vários pontos do Caribe e o Pedrinhas ao largo de Recife.
Os afundamentos causaram manifestações da população, que apoiadas pelos Estados Unidos, culminaram em agosto de 1942, na declaração de guerra do governo brasileiro aos paises do Eixo.
 

ATAQUE COVARDE
O Itapagé partiu sozinho do Rio de Janeiro, com destino a Belém do Pará, sob o comando do Capitão-de-longo-curso Antônio da Barra. Nesta época, o sistema de comboios era frequente, mas as últimas derrotas alemãs passavam à impressão de que a navegação já era segura. Terrível engano!

Partindo de uma escala em Salvador o navio, transportava 2.000 caixas de cerveja, remédios, perfumes, além de pneus, dois caminhões e utensílios destinados à indústria da borracha.
Para se proteger, o lento Itapagé, navegava a apenas oito milhas da costa. Porém, isso não impediu que, em 4 minutos o submarino alemão U-161, manchasse novamente de sangue as águas brasileiras. O Itapagé seria o penúltimo navio a ser atacado em nosso litoral.
Alguns registros dão conta de que o navio já pressentira a presença do agressor. É pouco provável, pois diversos tripulantes foram pegos dormindo e as providências para o abandono da embarcação não haviam sido tomadas, atitudes ilógicas em um estado de alerta.
No dia 23 de setembro, o Itapagé costeava Lagoa Azeda, a cerca de 60 quilômetros ao sul de Maceió e, o almoço já havia sido servido, quando de súbito uma forte explosão foi sentida.
O primeiro torpedo do U-161 atingia o navio por boreste, soa a buzina desesperada.
Em um minuto outro torpedo atinge em cheio o segundo porão, selando o destino


Os dois gigantescos motores a diesel
do navio. Rapidamente a água invade os camarotes e corredores do navio e o
pânico se instala a bordo. Para piorar, o convés superior estava abarrotado de carga inflamável, o que tornou os momentos finais um verdadeiro inferno.
Com o navio adernado, em chamas e afundando rapidamente no mar agitado, só duas baleeiras foram lançadas à água e, não restou outra opção a muitos tripulantes e passageiros a não ser jogarem-se ao mar, tentando se afastar da sucção do navio que submergia.
Agarrados a parte da carga que flutuava ou embarcados nas duas baleeiras, o tormento dos sobreviventes ainda não havia acabado. Pouco depois de o navio desaparecer deixando na superfície apenas um punhado de vidas e destroços, um vulto negro emergiu próximo aos náufragos. O pânico mais uma vez se instalou nos indefesos brasileiros: relatos dos sobreviventes do Baependi e de outros navios de bandeira estrangeira terem sido barbaramente metralhados, corriam entre a população. Mas da torre do submarino alguns marinheiros, barbados e sem camisa, fotografaram o estrago, riram do triste cenário. E, da mesma forma que surgiu, o U-Boat partiu.
Muitos dos náufragos, inclusive o comandante, foram resgatados por jangadeiros e fala-se de um heróico pescador, Cipriano, que com outros companheiros venceram as barreiras de recifes da costa diversas vezes, para conduzir os sobreviventes à segurança. Em terra, moradores, organizações e o exercito desdobraram-se para cuidar dos sobreviventes.
Os números da tragédia são como a verdade na guerra; morrem rápido! Fontes mais confiáveis registram um total de 106 tripulantes e passageiros, dos quais 22 morreram.
Quanto ao U-161 e seus 53 tripulantes, aparentemente não ficaram impunes. No dia seguinte do ataque, já no litoral da Bahia, foi detectado na superfície por avião Mariner, norte-americano e bombardeado. Dele, nunca mais se teve notícia, embora o seu afundamento não tenha sido confirmado.
 
OS DESTROÇOS
A 25 metros de profundidade, nas claras águas de Alagoas, é fácil perceber que os destroços de forma geral estão apoiados sobre o bordo de boreste, para onde a maior parte dos destroços tombou.
Pequenas penetrações podem ser feitas na proa, onde ainda estão escovéns, guinchos e cabeços-de-amarração. O castelo de proa está nitidamente partido do restante do navio, exatamente no primeiro porão, onde ocorreu o impacto inicial do torpedo. A carga de garrafas, pneus e parte de um caminhão espalha-se pelo fundo, demonstrando que o navio abriu-se neste ponto.
 
Penetração no compartimento da proa. abertura simples e porão amplo. Banheiros de cabe para baixo Escovém Cabeço-de-amarração Cabeço-de-amarração Cabeço-de-amarração Sistema de roldanas dos mastros. Sistema de roldanas dos mastros. Sistema de roldanas dos mastros. Cabeço-de-amarração Motores a diesel Máquinas a vapor Tanque de óleo Geradores e eixo Guincho de popa Volante do leme Válvulas de controle de vapor Banheiros com vasos, pias e banheira, um de lado e outro de cabeça para baixo. Penetração pelo outro lado do casco Guincho do primeiro mastro. Caldeira
 
Na sequência do navio, existe um primeiro conjunto de mastros, e logo depois, o navio se fragmenta novamente, indicando a região do segundo impacto de torpedo; mais carga espalha-se pelo fundo, agora são vidros de perfumes, pentes e mais garrafas.
Diversos banheiros estão caídos, alguns de cabeça para baixo.
No centro do navio, o maior espetáculo espera o mergulhador; são dois enormes motores diesel, com mais de 5 metros de altura e que formam um corredor onde barracudas e tartarugas desfilam para nosso deleite.
Mais surpresas ainda estão reservadas próximo aos motores. Duas

caldeiras e máquinas a vapor na mesma embarcação de motores a diesel, não há outro naufrágio assim no Brasil.
Em direção à popa, outro conjunto de mastros e mais garrafas e pneus. A estrutura da popa está quebrada e quase de cabeça para baixo. A quilha, ponta do eixo e o leme estão expostos, mas o hélice foi removido.

O MERGULHO
Além de toda a história que envolve o Itapagé, o naufrágio é enorme, com uma fauna incrível e milhares de pequenos detalhes para se apreciar. Por tudo isso, é muito difícil cobrir todo o naufrágio em um único mergulho. No ano passado, durante a expedição Naufrágios do Nordeste, encontramos a corneta da buzina, uma das últimas peças do navio a funcionar, em uma tentativa desesperada por socorro.

 

Porão de proa
 

A corneta da Buzina do Itapagé.
A peça continua no fundo
  Ela foi deixada no fundo. Este ano, retornamos ao local (Expedição Naufrágios do Nordeste 2009) e foi possível fotografar a peça, que continua por lá.

Por tudo isso, levante-se da frente do TV e ao invés de assistir a invasão da Normandia pela décima vez, vá recuperar uma úmida lembrança do passado heróico de nosso país, as gerações futuras agradecem.
Entenda que o Itapagé é muito mais que um monte de ferros, ali brasileiros também morreram pela pátria.


Veja mais informações em:

Naufrágios brasileiros na Segunda Guerra
Naufrágio do Itapagé
Curso de Mergulho em Naufrágios

Maurício Carvalho é biólogo, instrutor especialista em naufrágios, autor do SINAU (Sistema de Identificação de Naufrágios) e responsável pelo site Naufrágios do Brasil.

 

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