O choque com o vapor Borborema
O naufrágio do rebocador Guarany, que em 1913 vitimou tripulantes e guardas-marinha da Escola Naval, é um dos naufrágios que mais causaram comoção na sociedade da época e foram noticiados nos jornais do Brasil.
As versões cheias de emoção dos eventos, assim como em outros naufrágios, não deixam clara a real causa do choque com o cargueiro do Lloyde Brasileiro Borborema, mas retratam a catástrofe e o drama por que passaram os náufragos.
Histórico

Em 1906 o almirante Alexandrino Faria de Alencar idealizou um plano para a modernização da Marinha do Brasil. Durante a execução, foram adquiridos diversos navios que se tornariam famosos na nossa marinha, como os encouraçados Minas Gerais e São Paulo, os cruzadores Bahia e Rio Grande do Sul, além de vários outros navios menores.
Entre esses navios de apoio estava o rebocador de alto mar Guarany e outros seis rebocadores semelhantes (mas não sister ship) como o Heitor Perdigão, Muniz Freire, Mario Alvez, Tenente Lahmeyer (navio faroleiro), DNOG e Laurindo Pitta. Cabe lembrar que o DNOG bateu em uma laje na Baía da Ilha Grande e acabou por afundar na ponta dos Castelhanos, quando era rebocado de volta ao Rio de Janeiro e o Laurindo Pitta até hoje faz parte da esquadra, como navio museu.
O Guarany foi construído nos estaleiros da Craig Taylor & Company de Estocolmo, custando a Marinha 250:000$000 (Contos de Reis). Foi concluído em 1912, chegando ao Rio de Janeiro em 1913 e logo entrando em serviço. Um de seus primeiros trabalhos foi a tentativa de salvamento do cargueiro Workman, encalhado na Barra da Tijuca, RJ. Que não teve sucesso em virtude do navio já estar totalmente perdido quando chegou o rebocador.
Era considerado um poderoso rebocador de alto mar, com duas caldeiras e duas máquinas que desenvolviam uma velocidade de 14 nós. Tinha aparelhos de escafandro e era adotado de equipamentos de resgate. Sua tripulação era de 50 homens
FICHA TÉCNICA
Nome do Navio: Guarany
Data do Naufrágio: 03.10.1913
DADOS TÉCNICOS
Tipo de embarcação: Rebocador de alto mar
Armador: Marinha do Brasil
Nacionalidade: brasileira
Estaleiro: Craig Taylor and company – Estocolmo.
Início da construção: 1910 – Lançamento: 1912 – Baixa: 1913
Dimensões: comprimento: 42,6 metros – boca: 7,6 metros
Deslocamento: 576 toneladas
Material do casco: aço
Propulsão: 2 máquina a vapor de tripla expansão de 935,5 hp com velocidade máxima de 14 nós
Tripulação: até 50 homens
As manobras da Marinha
No dia 1º de outubro de 1913 partiu do Rio de Janeiro parte da esquadra da Marinha de Guerra, composta de seus dois grandes couraçados, o São Paulo e o Minas Gerais e por outras unidades menores como destroiers, contratorpedeiros e navios auxiliares.
O Estado Maior da Marinha, havia programado para o dia 2 manobras navais na região entre a Ilha de São Sebastião e Alcatrazes, no litoral de São Paulo. O próprio Ministro da Marinha, Almirante Alexandrino de Alencar, comandaria a esquadra e o presidente da república Marechal Hermes da Fonseca, abordo do transporte de guerra Carlos Gomes, observaria os exercícios.
A simulação de um combate naval consistia no primeiro esquadrão, capitaneado pelo couraçado Minas Gerais, comandado pelo Capitão-de Mar-e-Guerra Ramos Fontes, defender a Ilha de São Sebastião, enquanto o segundo esquadrão, liderado pelo couraçado São Paulo, sob o comando do Contra-Almirante Altino Correa se deslocaria da região da Ilha Grande para o litoral de São Sebastião com objetivo de exercitar uma manobra de desembarque.
Durante a madrugada do dia 2 a esquadra de defesa, assim como o Guarany, permaneceram ancorados no interior do canal que separa a Ilha de São Sebastião do continente aguardando o início das manobras.
No interior do rebocador Guarany, sob o comando tenente Aurélio de Azevedo Falcão, além da tripulação de 29 homens, estava uma turma de 21 guardas-marinha da Escola Naval, com objetivo de observar os exercícios.
No início da madrugada, o Almirante Baptista Franco, Chefe do Estado Maior da Armada e comandante da Esquadra, mandou seu ajudante de ordens, o Primeiro-Tenente Eleutério do Canto de 28 anos, informar a divisão atacante o início das atividades.
Nesse momento começam os mistérios que tradicionalmente circulam os eventos de naufrágios. Não conseguimos entender porque não foram utilizadas comunicações radiotelegráficas, que já estavam disponíveis na época e que depois foram utilizadas para dar ordens de busca pelos náufragos na área do acidente.
O tenente Eleuterio embarcou no Guarany, que imediatamente deixou o canal, contornando a Ilha de São Sebastião para mar aberto, ao encontro da divisão atacante do Contra-Almirante Altino Correa.
Sem a proteção da ilha, as condições eram precárias, havia cerração, vento sudoeste e mar agitado. O Guarany buscava nervosamente o São Paulo, pois as horas passavam e havia necessidade de transmitir a ordem de início das manobras recebida de seu chefe.
Eram mais de duas horas da madrugada do dia 2 quando o Guarany avistou dois vultos, que julgou ser contratorpedeiros. Mas os navios não responderam a seu chamado e o rebocador prosseguiu sua busca. Poucos minutos depois apareceria um terceiro vulto e se iniciaria os eventos da tragédia.
O Choque e o naufrágio
O vapor Borborema da companhia Loyde Brasileiro era uma cargueiro de 84 metros. Vinha do porto de Rio Grande, tendo escalado em Santos. Estava carregado de alfafa e madeiras. Segundo seu comandante, o experiente Capitão-de-longo-curso Thimoteo Silveira: “no início da noite do dia 2, o navio deixou Santos às 17 horas com destino ao Rio de Janeiro, depois de marcar o rumo por fora da ilha de São Sebastião ele se recolheu a seu camarote”.
Vapor Borborema da companhia Lloyde Brasileiro
A 10 milhas do farol da Ponta do Boi, o Guarany avistou o vulto do cargueiro do Loyde, imaginando tratar-se de um dos navios da 2ª divisão e por isso foram dados repetidos apitos para que a embarcação parasse e o rebocador fez a volta por bombordo, para se aproximar. Tudo indica que em virtude dos repetidos apitos do Guarany, o Borborema julgou que se tratava de um pedido de socorro.
Nesse momento, o 1º piloto do Borborema, José Carlos Barcellos, despertou o comandante, declarando haver um navio em perigo.
Assim, os navios se aproximaram por bombordo, trocaram sinais e se identificaram. Após isso, o cargueiro continuou a navegar a meia força e o Guarany voltou a sua busca.
A partir daí, os fatos são confusos e com duas narrativas. O que sabemos é que na madrugada do dia 03 cerca de 3 horas e 10 minutos da madrugada o Guarany foi novamente avistado muito próximo da proa do Borborema. Embora as embarcações tenham tentado manobras desesperadas para evitar o abalroamento, como desvios da rota e máquinas a ré, o Borborema com seus 5,02 metros de pontal chocou-se violentamente com a meia nau do Guarany. A força foi tanta que o rebocador da Marinha ficou preso por alguns segundos à proa.
Rapidamente, o Guarany partiu ao meio. A metade da proa submergiu imediatamente a bombordo do Borborema, enquanto a outra metade, passou arrastando pelo costado de boreste, até ir à pique atrás do cargueiro em menos de dois minutos.
A bordo do rebocador instalou-se o pânico. Muitos dos tripulantes e guardas-marinha atiraram-se ao mar, mas alguns nunca retornaram à superfície. Para os sobreviventes começava uma luta contra o mar agitado. Muitos náufragos permaneceram agarrados aos destroços e a maioria lutou por cerca de uma hora com as ondas e a água fria até que o socorro chegou.
O Borborema retornou ao local do choque lançando ferros e segundo os relatos dois marinheiros do Guarany escalaram pelas amarras embarcando no navio do Lloyde. O comandante Thimoteo mandou dar sinal de alerta a todos os tripulantes, vistoriar o navio e baixar dois escaleres na água, regatando mais de vinte homens que se debatiam ou permaneciam agarrados a destroços na superfície.
O Borborema apresentava um rombo na proa por onde fazia água que foi rapidamente tamponado, chapas em ambos os bordos amassadas, costados arranhados e perdeu uma das pás do hélice de boreste. O navio permaneceu no local do sinistro em busca de sobreviventes, até que pela manhã foi de encontro a esquadra para dar a notícia da catástrofe.
Manchetes da tragédia em todos os jornais por dias consecutivos – Danos no casco do Borborema
As providências
O transporte de guerra Carlos Gomes, com o presidente e o ministro da Marinha abordo permaneceu fundeado no porto de São Sebastião. Às 10:30 da manhã um escaler do encouraçado Minas Gerais, conduzindo o comandante do Borborema, que explicou os eventos da madrugada.
Foram emitidas ordens por radiotelegrafia para que os cruzadores Rio Grande do Sul, Bahia, bem como os quatro destroiers, seguissem imediatamente ao local do sinistro, afim de prestar auxílio aos náufragos, ou recolher os corpos das vítimas. O Presidente da República também determinou que fossem trazidos para o Carlos Gomes os sobreviventes que se achavam a bordo do Borborema, onde eles foram acolhidos da melhor forma possível.
As buscas foram infrutíferas e embora as buscas no mar e nas praias da região tenham seguido até o dia 7, nenhum outro náufrago ou corpo foi localizado. As unidades da marinha rumaram para o porto de Santos.
O Carlos Gomes e o Borborema seguiram viagem até o Rio de Janeiro escoltado por outras unidades da Marinha. No calor dos acontecimentos o comandante do Borborema foi preso e acusado de “omissão de salvamento” respondendo posteriormente ao inquérito naval.
As primeiras informações do acidente chegaram em terra através do comandante Tollon do vapor francês Espagne, que comunicou, que quando passava à meia noite, na altura da ponta norte da Ilha de São Sebastião avistou dois navios mercantes que navegavam em direções opostas e que se chocaram momentos depois.
As luzes do vapor menor apagaram-se primeiro e em seguida as do maior. O comandante francês presumiu que tinham ido a pique e não pode socorrê-los devido ao forte nevoeiro e a mar agitado.
O naufrágio causou a morte do 1º tenente Eleutério do Canto, ajudante de ordens do Almirante Baptista Franco, chefe do Estado Maior da Armada, oito guardas-marinha e vinte tripulantes do Guarany.
As notícias da tragédia estamparam as manchetes por dias seguidos. A cidade do Rio de Janeiro parou para as homenagens as vítimas. Sendo realizado um cortejo com honras militares pelas ruas do centro acompanhado pela população da cidade e um culto na igreja da candelária.
Quanto ao Guarany, tudo indica que tenha afundado em duas partes separadas por pelo menos 100 metros. O local apresenta cerca de 70 metros de profundidade, numa região que além de condições meteorológicas difíceis, costumam apresentar águas muito escuras no fundo. Essa hipótese está baseada nas condições encontradas nos dois naufrágios localizados mais próximos da região o Campos e no Elihu Washburne.
O inquérito
A Capitania do Porto do Rio de Janeiro abriu inquérito para apurar o caso; foram ouvidas 25 pessoas entre as quais os comandantes do Borborema, do Guarany e os guardas-marinha sobreviventes. O inquérito concluiu pela casualidade do fato, dada às condições de tempo em que navegavam as duas embarcações. Não foi atribuída imperícia ou negligência a nenhum dos comandantes.
Na ilustração, a explicação dos eventos do acidente segundo o comandante do Guarany. Ele afirma que o navio do Lloyde Brasileiro realizou uma manobra circular, o que se confronta com a descrição do Borborema, segundo a qual foi o Guarany que circulou.
Porém devemos avaliar, que o Borborema após se identificar ao Guarany, o que é confirmado nos dois depoimentos, não teria razões para desviar de sua rota em direção ao Rio de Janeiro e circular pela região. Ao contrário do Guarany, que declarou estar circulando a procura dos navios da 2ª divisão.
Também não fica claro o porquê não foram utilizadas comunicações radiotelegráficas para iniciar aas manobras.
Mais mistério dos naufrágios que o tempo e o fundo do mar guardarão para sempre.
(Maurício Carvalho – 2025)