Especial- Fagundes Varella

Caldeira e cachaça... que calvário

Pesquisa e texto: Gustavo Pereira Nunes

Do estaleiro inglês ao litoral brasileiro

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Ilustração representativa de como deveria ser o vapor Fagundes Varella

O vapor Fagundes Varella representa um capítulo significativo e, por fim, trágico na história da navegação mercante brasileira do início do século XX. Construído em 1889 nos renomados estaleiros da Inglaterra, o navio iniciou sua carreira sob o nome Theodorich, servindo a interesses europeus antes de ser incorporado à frota nacional. Sua trajetória, marcada por mudanças de nome e proprietários, culminou em sua aquisição pelo Lloyd Brasileiro, onde passou a operar em importantes rotas de cabotagem.
Em outubro de 1912, uma combinação fatal de mau tempo, uma carga perigosa e as limitações tecnológicas da época selou seu destino em um incêndio catastrófico na costa de Sergipe.
Esse dossiê reconstitui a história do Fagundes Varella, desde sua construção até os detalhes de seu naufrágio e os mistérios que ainda cercam seus destroços, oferecendo um retrato fiel de um navio que é um exemplo emblemático de sua era.

Origens e construção

Compreender a origem de uma embarcação é fundamental para avaliar sua qualidade construtiva e o contexto tecnológico em que foi concebida. O Fagundes Varella nasceu como Theodorich no auge da era vitoriana, um período de incontestável prestígio para a engenharia naval britânica. Sua fabricação no estaleiro William Gray & Company, um dos gigantes de West Hartlepool (Inglaterra), atesta um padrão de excelência. A indústria britânica liderava o mundo na construção de cascos de aço e no desenvolvimento de máquinas marítimas eficientes, tecnologias que fizeram de seus navios a espinha dorsal do comércio global.
Os detalhes de sua construção revelam uma embarcação robusta, projetada para o transporte de carga em mar aberto, conforme os mais altos padrões de seu tempo.
Fagundes Varella lloyde

  • Nome Original: Theodorich
  • Ano de Construção: 1889
  • Data de Lançamento: 1º de maio de 1889, por Lady Havelock Allen
  • Estaleiro: William Gray & Company (W. Gray & Co.), West Hartlepool, Inglaterra
  • Construtor das máquinas: Central Marine Engine Works, Hartlepool, Inglaterra
  • Primeiro Proprietário: Lange Gebruder (J. Lange), de Kiel

Essas origens fornecem a base para uma análise aprofundada de suas capacidades, detalhadas em suas especificações técnicas.

Especificações técnicas
A análise das especificações técnicas do Fagundes Varella permite compreender suas capacidades operacionais e seu propósito como navio cargueiro. Os dados, compilados de diversos registros históricos, mostram um vapor de aço com propulsão a hélice única e uma máquina de tripla expansão. Esta última era uma inovação crucial que melhorava significativamente a eficiência do combustível em comparação com as máquinas mais antigas, estendendo o alcance dos navios a vapor e tornando rotas longas, como as que o Fagundes Varella serviu na América do Sul, mais comercialmente viáveis. As pequenas variações nos números de dimensões e potência, comuns em registros de mais de um século, refletem diferentes métodos de medição e conversão, mas convergem para o perfil de um cargueiro de médio porte.
A tabela abaixo consolida as informações técnicas disponíveis, apresentando um retrato detalhado da embarcação.

Fagundes varella poetaO homenageado
Luís Nicolau Fagundes Varella, foi um dos maiores expoentes da poesia brasileira da segunda geração do romantismo.
Nasceu em Rio Claro, RJ, em 17.08.1841 e faleceu em Niterói, RJ. em 17.02.1875.
Estudou na Faculdade de Direito, mas não terminou o curso, preferindo a literatura e a boêmia.
Seu poema mais aclamado é o Cântico do Calvário, publicado em 1865.

CARACTERÍSTICAS DETALHADAS

Tipo: vapor cargueiro de aço, com um hélice (steel screw)
Dimensões
Comprimento: 245 pés (74,8 metros)
Boca: 35.1 pés (10,7 metros)
Calado:
14.9 pés (4,7 metros)
Tonelagem Bruta (g.r.t.): 1.619 toneladas
Líquida (n.r.t.): 1.027 toneladas
Propulsão: máquina de tripla expansão (cilindros 19, 30½ & 51 -36 in)
Potência: 140 hp (cavalos nominais)

CARACTERÍSTICAS DETALHADAS

Identificação Número Oficial:
14450 – Código de Letras: LCHQ
Tripulação 35 homens e 2 praticantes
Equipamento de salvamento 3 escaleres
Valor (Dez. 1911) 242:000$000 (242 mil contos de réis)
Sisterships: existem relatos de possíveis sisterships chamados  Alarich, Ermanarich e Geiserich.
Data do naufrágio: 07.10.1912

Da sua ficha técnica, passamos à narrativa de sua vida útil, marcada por diferentes bandeiras e nomes que refletem sua jornada pelos oceanos.

Cronologia de nomes e proprietários

A sucessão de nomes e proprietários de um navio comercial é um espelho das dinâmicas econômicas e das rotas que serviu ao longo de sua existência. A carreira do Fagundes Varella ilustra essa transição, de uma embarcação a serviço de armadores alemães para uma peça importante na navegação de cabotagem brasileira.

  • 1889 – Theodorich: lançado ao mar com este nome, o navio foi inicialmente propriedade da firma alemã Lange Gebruder, de Kiel, operando sob sua bandeira nos primeiros anos de serviço.
  • 1892 – Roma: a embarcação foi adquirida pela A.C. de Freitas & Co., de Hamburgo, e rebatizada como Roma. Sob esta nova identidade, continuou a servir interesses comerciais europeus.
  • 1904 – Fagundes Varella (Empresa Freitas): o navio chega ao Brasil, sendo incorporado à frota da Empresa Brazileira de Navegação Freitas. Embora algumas fontes especulem, com incerteza, uma possível venda inicial à Companhia de Navegação Cruzeiro do Sul, é sob a bandeira da Empresa Freitas que ele recebe seu nome definitivo. A nomeação homenageava o poeta fluminense, uma prática que, segundo algumas fontes, era comum na A.C. de Freitas & Co., que tinha outros navios com nomes de escritores (vapor Castro Alves e vapor Gonçalves Dias).
  • 1906/1907 – Fagundes Varella (Lloyd Brasileiro): as fontes históricas divergem, citando tanto 1906 quanto 1907, mas confirmam que o navio foi vendido pela Empresa Freitas ao Lloyd Brasileiro. Sob a bandeira da maior companhia de navegação do país, o Fagundes Varella passou a ser empregado como cargueiro na linha que ligava Buenos Aires a Pernambuco, uma rota vital para o comércio sul-americano.
    Foi justamente no cumprimento dessa rota que o navio partiu para sua última e fatídica viagem.

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A última viagem e o naufrágio (outubro de 1912)

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Fagundes Varella segundo a IA

O fim do Fagundes Varella foi uma catástrofe anunciada por uma tempestade implacável e selada pela natureza volátil de sua carga. O naufrágio, ocorrido na manhã de 7 de outubro de 1912, não foi resultado de um único evento, mas de uma sequência de fatores que transformaram uma viagem de rotina em uma luta desesperada pela sobrevivência, evidenciando os perigos inerentes à navegação da época.

A partida e a carga
O vapor zarpou do porto de Maceió às 18 horas do dia 5 de outubro de 1912, sob o comando de Ordener José Carneiro, com destino a Salvador. O relato do mestre da embarcação, Joaquim Nunes, e os registros da época indicam que o navio partiu diretamente para um “medonho temporal”. Sua carga era composta predominantemente por produtos regionais, incluindo um volume significativo de álcool, cujo montante exato é fonte de discrepância nos registros históricos.

  • Aguardente/Álcool: as fontes citam números conflitantes de 100, 200 e até 2.100 pipas.
  • Açúcar: 2.000 sacos.
  • Coco: 200 sacos.

Essa carga inflamável se tornaria o estopim da tragédia que se desenrolou nas horas seguintes.

A única coisa mais inflamável do que o próprio álcool vazando era a confusão nas notícias da época.
Parece que o pânico a bordo se espalhou até para o setor de
inventário, transformando 100 barris em um volume de proporções bíblicas. Enquanto alguns jornais, reportavam uma carga geral de 200 pipas de álcool, um relato mais dramático mencionava 2100 pipas de aguardente.
A verdade nua e crua, narrada
pelo Mestre Joaquim Nunes, era que havia no porão 2 100 pipas de álcool o que deixa evidente como foi criada a confusão.

A sequência do desastre
Fagundes Varella noticia Fagundes Varella noticia 2Os depoimentos dos sobreviventes, publicados em jornais da época, pintam um quadro vívido do desastre. Logo após deixar Maceió, o Fagundes Varella foi engolfado por um violento temporal e uma “forte cerração” que reduzia a visibilidade a poucos metros.
Sacudido brutalmente pelas ondas, o navio adernava com violência. Na madrugada do dia seguinte, um forte cheiro de álcool tomou conta da embarcação. Uma verificação no porão nº 2 revelou que a agitação do mar havia soltado as pipas de aguardente; algumas haviam se rompido, derramando seu conteúdo inflamável.
Enquanto a tripulação tentava, sem sucesso, conter o vazamento, o álcool escorreu até a casa de máquinas. O contato do líquido volátil com o calor irradiado pelas fornalhas das caldeiras provocou uma ignição instantânea. Uma faixa de chamas percorreu o porão, comunicando o fogo à massa de álcool derramado e às pipas restantes, que começaram a explodir. O incêndio tornou-se incontrolável, forçando os maquinistas, já sitiados pelo fogo, a abandonar seus postos e fugir para o convés.
Com as chamas tomando conta da estrutura, o comandante Carneiro deu a ordem para abandonar o navio. O que se seguiu foi o colapso da ordem em meio ao pânico. A tentativa de arriar os escaleres transformou-se em uma tragédia à parte. O primeiro foi arremessado contra o casco do próprio navio pelo mar revolto e se despedaçou. Quando os oficiais tentaram organizar a evacuação no que restava, a disciplina ruiu. Segundo relatos, tripulantes armados com “machadinhas” se insurgiram, tomando à força a última baleeira.
Na pressa tumultuada de arriá-la, um dos turcos se partiu. Presa por apenas uma
extremidade, a embarcação pendeu verticalmente, lançando seus vinte e três ocupantes nas águas turbulentas. Em meio ao caos, muitos se jogaram desesperadamente ao mar, enquanto outros tentavam construir jangadas improvisadas. Inacreditavelmente, o Fagundes Varella, em chamas e sem ninguém no leme, continuou a navegar a onze milhas por hora, impulsionado por suas máquinas abandonadas.

O resgate e as vítimas
Os sinais de socorro, ocultos pela densa cerração, permaneceram invisíveis por horas. O resgate só chegou por volta das 16h30, quando os vapores Conde Asdrúbal, de bandeira nacional, e o britânico Asiatic Prince avistaram o navio em chamas e iniciaram o salvamento dos sobreviventes que se agarravam a destroços ou flutuavam no mar.
Os números da tragédia variam conforme a fonte, mas apontam para uma perda humana devastadora.

  • Número de vítimas: os relatos mencionam 16, 17 ou 19 mortos. Entre os mortos, as fontes nominam figuras-chave como o imediato Américo Noronha, o 3º maquinista, a esposa do comissário de bordo e o único passageiro que havia embarcado em Maceió.
  • Sobreviventes: os resgatados foram levados para a Bahia e, de lá, seguiram viagem para o Rio de Janeiro a bordo do paquete Olinda.
    O casco em chamas do Fagundes Varella não afundou imediatamente, ficando à deriva e representando um perigo à navegação até desaparecer no mar.

Os destroços e sua localização
A identificação de um naufrágio é um processo complexo que busca conectar evidências físicas a registros históricos. No caso do Fagundes Varella, embora exista um destroço atribuído a ele, persistem dúvidas que desafiam uma confirmação definitiva.

  • Fagundes Varella posicao 2Localização: o naufrágio atribuído ao Fagundes Varella está localizado a aproximadamente 14 milhas do farol do Rio Real (praia Costa Azul), próximo à costa de Mangue Seco, na Bahia, quase fronteira com Sergipe.
    As coordenadas de GPS registradas são 11º 37′ 30.9″ S e 037º 27′ 11.7″ W.
  • Estado do destroços: os destroços encontram-se desmantelados sobre um banco de areia. Partes da estrutura, como duas grandes caldeiras e a máquina, são visíveis.
    Apesar da localização ser compatível com os relatos do naufrágio, a identificação do destroço é objeto de controvérsia. Relatos posteriores ao evento levantaram hipóteses conflitantes:
  • Jornais da década de 1950 chegaram a afirmar que os destroços pertenciam a um submarino alemão, uma teoria posteriormente descartada.
  • Uma análise técnica do destroço aponta concordância com todos os registros do Fagundes Varella, onde se confirma que suas máquinas eram do tipo Triple Expansion Engine (tripla expansão), como a presente na praia.

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Nos destroços está clara a presença de máquinas de tripla expansão, duas caldeiras scotch e um condensador

Sem a confirmação do encalhe do navio em chamas, até o momento, a identificação positiva do destroço como sendo o do Fagundes Varella, deixando um véu de incerteza sobre seu local de repouso final.

Conclusão
A história do Fagundes Varella é mais do que o registro de um navio; é um estudo de caso sobre os riscos da navegação comercial na transição para o século XX. Seu naufrágio não foi apenas uma tragédia humana, mas o resultado de uma confluência de fatores: a fúria imprevisível do clima, os perigos inerentes a certas cargas e as limitações da tecnologia de salvamento da época. A evacuação caótica, marcada por motim e falha dos equipamentos de resgate, expôs a fragilidade da vida no mar, mesmo a bordo de uma embarcação robusta e bem construída. O Fagundes Varella, desde seus dias como Theodorich até seu fim incandescente na costa brasileira, deixou um legado duradouro, e sua história continua a ser uma peça valiosa para a compreensão da história marítima do Brasil.

Foto Gustavo nunesVeja também o vídeo sobre o naufrágio do Fagundes Varella

Pesquisa e texto: 
Gustavo Pereira Nunes
Apaixonado por tecnologia e esportes desde a infância, descobriu o mergulho em uma viagem a Bonito (MS) — e desde então foi “contaminado pelo ar comprimido”. Especializou-se em mergulho recreativo e em naufrágios.
Divemaster dedicando-se ativamente à comunidade de mergulhadores e à divulgação da história dos naufrágios, iniciou investigações no universo dos navios afundados e da história marítima. Atualmente concentra-se com entusiasmo em cada nova descoberta e em cada fragmento de informação que surge nesse contagiante mundo da pesquisa.

Mais informações:
naufragios@naufragiosdobrasil.com.br

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