WORDSWORTH

Sumário

Texto: László Mocsári e Maurício Carvalho
Pesquisa histórica: Maurício Carvalho
Fotos e mapeamento: László Mocsári

A descoberta

Maurício Carvalho
Em agosto de 2000 o mergulhador Zilan Costa me reportou a existência do naufrágio de um vapor na praia de Itacimirim, perto da praia do Forte na Bahia, conhecido como Curuzu. As pesquisas históricas realizadas para o SINAU (Sistema de Informações de Naufrágios) mostravam que existia uma grande possibilidade de se tratar do naufrágio do navio Belga Wordsworth, encalhado em 04 de agosto de 1902.
Posteriormente tomou-se conhecimento que mergulhadores de Salvador haviam realizado em 1972 trabalhos de resgate nesse navio. Mas as informações ainda pareciam confusas e outros naufrágios próximos tinham suas histórias misturadas com a desses destroços.
Em dezembro de 2025 o mistério se desfez. O experiente mergulhador e pesquisador de naufrágios de Salvador László Mocsári, conseguiu mergulhar nos destroços e realizar a documentação em foto e vídeo, que permitiu confirmar a identificação de mais esse naufrágio do Brasil. Agora, a história completa do Wordsworth já pode ser contada.

Vista da praia de Itacimirim da posição das máquinas do navio, que tinha sua identidade desconhecida

A pesquisa

Além do tamanho, tipo do navio e peças características como âncoras e máquinas, foi possível localizar parte da carga importante do navio, que era o material elétrico para a Companhia Ferro-Carril do Jardim Botânico (CFCJB ou Jardim Botânico Tramway Company) do Rio de Janeiro, responsável pela instalação de bondes elétricos nas linhas da zona sul carioca, substituindo os bondes puxados por burros.
Todas as informações históricas dos jornais de época, local do naufrágio, dados técnicos e o cruzamento desses dados com os destroços no fundo permitiram uma inequívoca identificação do naufrágio presente na praia de Itacimirim, como sendo o Wordsworth.

 
Companhia Ferro-Carril Jardim botânico e um dos bondes encomendados na empresa John Sttephenson de Nova York
Pontos de convergência entre o Wordsworth e o naufrágio de Itacimirim



A âncora tipo almirantado pendurada no bordo do navio, ainda pode ser vista na mesma posição no fundo

Dados básicos

Nome do navio: Wordsworth
Data de afundamento: 04.02.1902

Dados de localização

Local: Praia de Itacimirim
UF: Bahia
País: Brasil
Posição: Junto aos recifes em frente à praia
Latitude: 12º 38.321′ sul
Longitude: 038º 02.611’ oeste
Profundidade mínima: 0 metros
Profundidade máxima: 6 metros
Condições atuais: desmantelado

Dados técnicos

Nacionalidade: Belga
Ano de fabricação: 1899
Estaleiro: Leslie, Andrew & Co., Hebburnno no rio Tyne em Newcastle
Armador: Lamport and Holt
Deslocamento: 3.670 toneladas
Comprimento: 111.8 metros
Boca: 11.9 metros
Tipo de embarcação: Paquete
Material do casco: ferro
Carga: 2.400 toneladas – material da Companhia Ferro-Carril Jardim Botânico
Propulsão: máquinas a vapor de dupla expansão
Motivo do afundamento: encalhe

Histórico

Este vapor foi construído na Inglaterra pelo estaleiro Leslie, Andrew & Co., Hebburnno no rio Tyne em Newcastle e foi lançado em 1889 para a empresa Rathbone Bros, de  Liverpool, com o nome de Hairby. Ele possuía casco de ferro, com 111.8 metros de comprimento, 11.9 de boca e 5.9 de calado, deslocando 3.670  toneladas.  Suas duas máquinas eram compostas de 2 cilindros de 28” e 60” (polegadas),  com potência de 441  NHP e um hélice reto.

Dados do Lloyd’s Register em 1900

Ainda em 1889 foi comprado pela Harrison T. & J. Ltd. – Charente S.S. Co. também de Liverpool e rebatizado de Capella.
Desde 1866, a Lamport and Holt negociava com a Antuérpia e em 1877, ganhou um contrato para o transporte de correspondência para o Brasil, Uruguai e Argentina. O contrato exigia que todos os navios em serviço fossem registrados na Bélgica. Então, a Lamport and Holt fundou uma subsidiária belga, a Societé de Navigation Royale Belge Sud-Americaine.
Em 1877, o navio a vapor Copernicus, de 1.629 toneladas brutas, foi o primeiro a ser transferido da LB&RP SN Co para a nova empresa e seu registro foi transferido para Antuérpia. Esse vapor também viria a encalhar e naufragar em Ponta de Pedras no litoral norte de Pernambuco em 25 de fevereiro de 1883. Em 1878, outros sete navios a vapor da LB&RP seguiram o mesmo caminho. A operação belga da Lamport and Holt continuou até 1908.
À medida que a frota inicial da Royal Belge Sud-Americaine se tornava obsoleta, a Lamport and Holt tendia a substituir seus navios por outros de segunda mão da LB&RP. O  Galileo em 1886,  o  Leibnitz  em 1873, o  Maskelyne e o Hevelius em  1889. Em 1890 o Coleridge foi transferido para a  Navegation Royale Belge Sul-americaine e renomeado SS. Wordsworth.
Provavelmente em homenagem a William Wordsworth, morto em 1850 e que é considerado o maior poeta romântico inglês. A companhia desde o Copernicus (1862) regularmente batizava seus navios em homenagem a grandes cientistas ou artistas notáveis como: Voltaire, Amadeu, Verdi, Velasquez (1908 – Ilha de São Sebastião), entre outros.


Vistas de proa e de popa do cargueiro S.S. Wordsworth da Navegation Royale Belge Sul-americaine

O naufrágio

A partir de 1890, o Wordsworth começa a aparecer no noticiário, em rotas regulares entre a Europa e o Rio de Janeiro, com diversas escalas como: Barbados, Recife e Salvador.
Em julho de 1902, o Wordsworth partiu de New York com cerca de 600 toneladas de carga para Salvador e 1800 toneladas para o Rio de Janeiro. A bordo estava uma carga muito valiosa que incluía o maquinário elétrico e respectivos dínamos, fabricados pela John Stephenson Car Company de New York, para a estação elétrica dos bondes da Companhia Ferro-Carril Jardim Botânico do Rio de Janeiro.
Já nas águas do Brasil, o cargueiro fez escala em Pernambuco e seguiu em direção a Salvador. Às 4 horas da madrugada do dia 04 de agosto o vapor encalhou nos recifes em frente à Açú da Torre (Assú da Torre), atual praia de Itacemirim, cerca de 50 milhas ao norte de Salvador. A posição de GPS é Latitude 12º 38.321′ sul e Longitude 038º 026.11’ oeste.
O navio encalhado muito próximo de terra ficou fortemente adernado para bombordo e batido pelas ondas, rapidamente começou a inundar.
A notícia do encalhe chegou a Salvador através do 2º oficial e de alguns passageiros que conseguiram com sucesso atingir a costa num pequeno barco de pesca e depois de 8 horas caminhando, chegaram a a estação da estrada de ferro Açú da Torre em mata de São João. De lá, seguiram para Salvador, onde chegaram na tarde do dia 04 (segunda-feira).
Os demais tripulantes e passageiros, as bagagens e as malas do correio foram levados a salvo para a praia, onde, segundo os jornais da época, tiveram que se alimentar de cocos.
Na manhã seguinte, o rebocador Paraguassú tentou partir em auxílio do Wordsworth, porém devido ao mar grosso teve que retornar a Baía de Todos os Santos, pagando com a perda de alguns botes.
À meia-noite de terça-feira o gerente do Lloyde brasileiro partiu a bordo do Itaparica da Companhia Baiana de Navegação. Retornou na manhã seguinte da posição do naufrágio trazendo 70 pessoas entre passageiros e a tripulação, inclusive 10 senhoras e crianças. Nas palavras do gerente do Lloyde “havia poucas chances de salvar o navio. O mar estava quebrando sobre ele e o capitão estava receoso de sua perda”.
Na quarta-feira, também foi despachado para o local, para prestar assistência e tentar os últimos recursos o cargueiro francês Corrientes da Companhia Chargeus Réunis. Ele retornou a
Salvador depois de avaliar que havia pouca chance de salvar parte da carga, já que as alvarengas não conseguiam se aproximar do casco devido ao embate das ondas. No dia 7, as notícias já davam conta de que a água invadira todo o navio, estando perdido o vapor e a maior parte da carga. Apenas alguns volumes, que deram a praia, foram guardados por um empregado aduaneiro.
Quanto ao maquinário da Companhia Ferro-Carril Jardim Botânico, sua perda causou apenas atraso das novas instalações elétricas, pois o maquinário estava seguro em diversas companhias. Fato curioso; pela data dos fatos, a linha de bondes elétricos prejudicada foi a do Largo dos Leões até a Gávea, que se ainda existisse atualmente, passaria em frente a minha casa. A história batendo a minha porta.
Quanto ao S. S. Wordsworth, apesar do fácil acesso, teve poucas de suas partes removidas ao longo dos anos, o que é de se estranhar e os destroços atuais formam um dos mais belos conjuntos entre os naufrágios do Brasil. A água no local não costuma ser muito clara devido ao embate das ondas em profundidade de apenas 0 a 6 metros.


Posição dos destroços sobre os recifes em frente a praia de Itacimirim no litoral norte da Bahia. Com maré baixa os destroços podem ser vistos na superfície

O mergulho e a descrição do sítio

László Mocsári
Este naufrágio é conhecido pelos mergulhadores e pescadores locais desde a época do seu afundamento, pois, durante a maré baixa, é possível ver da praia uma estrutura aflorando, apesar de estar a cerca de 400 metros de distância. Muitos não conhecem o seu nome, e alguns chamam-no de Curuzu. Pescadores mais antigos contam que houve um casamento à bordo.
Na década de 1970, o engenheiro José Dortas obteve licença para explorá-lo, mas nunca o fez. Em 1976, segundo Dortas, o hábil mergulhador Frederico Wiering morreu durante a exploração do naufrágio, possivelmente por causa física não relacionada ao mergulho.
Mergulhei lá por duas vezes na minha juventude, praticando caça submarina. Recentemente, após 40 anos, retornei com outros olhos, após realizar o Curso de Reconhecimento de Naufrágios de Maurício Carvalho, e, para minha surpresa, o curso recém-concluído estava quase todo — ou pelo menos boa parte — diante dos meus olhos.
Apesar de destroçado após mais de 120 anos, sofrendo as intempéries do mar e próximo à zona de arrebentação, o sítio ainda preserva quase intactas muitas estruturas, o que nos ajudou a identificar o naufrágio como sendo o do Wordsworth.

Descrição

A proa estruturada apresenta-se adernada para bombordo, ainda com a âncora almirantado presa à proa, da mesma forma como o navio a transportava. É possível identificar o turco da âncora e ambos os escovéns, sendo que o de boreste (extremidade do convés) tem uma corrente entrando por ele. Ainda na proa, pode-se ver um amontoado de ferro retorcido e desabado, nessa região se identifica um  guincho vertical junto a um cabeço de amarração.
Seguindo em direção à popa, poucos metros adiante há dois cabeços de amarração, um em cada bordo; um pouco mais à frente, há uma concreção espiculada difícil de identificar, que possivelmente seria parte da carga e, ao lado, caído para bombordo, o mastro de vante parcialmente destruído. Seguindo o mastro, pode-se ver as quatro bigotas de bombordo que abrigavam o cabeamento do mastro, conforme observado na foto antiga do Wordsworth.

Bico de proa, com a âncora ainda pendurada no convés de bombordo e ao fundo o turco. Um dos guinchos do vapor
Alguns metros adiante, no mesmo sentido, há uma estrutura cilíndrica com cerca de 1,5 m de diâmetro e uns 2 metros de comprimento, parcialmente encoberta por chapas que desabaram do convés, com a presença de fios. Minha primeira impressão foi de que se tratava de um gerador elétrico, o que ratificou a informação obtida pela pesquisa de Maurício, de que o Wordsworth transportava um dínamo para a Companhia Ferro-Carril Jardim Botânico no Rio de Janeiro.

O primeiro mastro e as quatro bigotas do mastro. Possível dínamo destinado a  Jardim Botânico Tramway Company


Pouco mais adiante, a bombordo, há um guincho e dois cabeços de amarração, um em cada bordo. Seguindo, já em meia nau, há três grandes caldeiras com duas fornalhas: uma disposta no sentido transversal ao eixo axial do navio e duas alinhadas com esse eixo, dispostas lado a lado. Duas delas estão praticamente íntegras e uma parcialmente destruída. Cerca de 4 metros à ré dessas caldeiras está uma linda máquina a vapor de expansão dupla (Double Expansion Engine), caída para bombordo, muito bem preservada, sendo possível ver os mínimos detalhes. Uma das pernas de sustentação do motor aflora na superfície durante a maré baixa, permitindo o avistamento da praia.
É possível ver, saindo de ambos os cilindros, as hastes dos pistões às cruzetas, com as bielas ainda fixadas ao virabrequim. O virabrequim, por sua vez, continua em um grande volante de inércia (flywheel), mas não foi identificado um gerador. O primeiro navio com eletricidade foi o SS Columbia em 1880, assim é possível que ele não tivesse energia elétrica. O volante sulcado que poderia estar ligado por correias a um gerador elétrico, bomba d’água ou exaustores. À boreste do virabrequim vê-se uma grande caixa medindo cerca de 5 metros de comprimento e ao lado dela um guincho horizontal.
O volante, por sua vez, está acoplado a um longo eixo de cerca 30 metros de comprimento de 45 cm de diâmetro, com um mancal no meio.
 
Uma das 3 caldeiras e a máquina a vapor de dupla expansão

 Parte da cruzeta, biela, virabrequim, eixo de manivela e o flywheel (volante de inércia). Eixo apoiado nos mancais seguindo para a popa 

É possível ver o eixo passando pela gaxeta na popa (vedação do eixo com o casco), que está parcialmente montada e adernada para bombordo. Na parte externa, vê-se a hélice com as pás afiladas, com cerca de 1,7 metros cada, sendo visíveis apenas duas pás. Esse estilo de hélice, bastante primitivo, se repete em poucos naufrágios do Brasil como o Queimado (1873), PB. e no Moreno (1874), RJ.
À ré da hélice, há um cabeço de amarração, pode-se ver o beiral da popa e o leme caído a bombordo com o mecanismo de direcionamento do navio (volante do leme) relativamente íntegro. Voltando para vante, ainda na popa, a bombordo, há um cabeço de amarração caído, uma carga que parece ser de material ferroviário — talvez para os bondes do Rio —, junto a esse material há um guincho e, voltando um pouco mais, o mastro de ré em fragmentos, caído para bombordo, indo de encontro com o eixo de propulsão.

Mecanismo do volante do leme, o hélice primitivo e afilado e parte da carga de material para os bondes da Companhia Ferro-Carril Jardim botânico


László Mocsári
Vídeo do Wordsworth
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